Ultimamente venho refletindo muito sobre a questão do barulho. Eu sinto muita dificuldade de permanecer em lugares públicos, tenho observado como é crescente a poluição sonora que estamos vivendo, e mais impressionada em perceber como as pessoas parecem estar acostumadas com isso. Encontrei um texto das cartas de Jung e trouxe para nossa reflexão... impressionante como é pertinente para os dias de hoje, talvez ainda mais do que na época em que a carta foi escrita.
"(...) o barulho é apenas um dos males de nosso tempo, ainda que o mais chocante. Os outros são o gramofone, o rádio e, recentemente, a praga da televisão. Fui perguntado por uma organização docente por que, apesar da melhor alimentação, não se conseguia dar o programa todo na escola elementar de hoje. A resposta é: falta de concentração, demasiados estímulos de distração. Muitas crianças fazem seus deveres escolares ouvindo rádio. Tanta coisa é aduzida de fora sobre as crianças, que não precisam mais pensar no que poderiam fazer por iniciativa própria e que exigiria certa concentração (...)
O barulho é bem-vindo porque abafa o alarme instintivo interior. Quem sente medo procura companhia barulhenta e pandemônio, que espantam os demônios. (Os meios primitivos correspondentes são a gritaria, música, tambores, pirotecnia estrondosa, sinos, etc.) O barulho dá uma sensação de segurança, como a multidão de pessoas; por isso é apreciado e teme-se fazer algo contra ele, pois sente-se instintivamente a magia apotropaica que ele emana. O barulho nos protege da meditação dolorosa, dispersa sonhos ansiosos, assegura-nos que formamos um todo unido e produzimos tal estrondo, que ninguém jamais ousará atacar-nos. O barulho é tão imediato, tão invencivelmente real, que tudo o mais é pálida ilusão. Ele nos dispensa de qualquer esforço de dizer ou fazer alguma coisa, pois o próprio ar treme diante da força de nossa manifestação invencível de vida.
O reverso da medalha é este: não teríamos o barulho se não o desejássemos secretamente. Ele não é apenas inconveniente ou prejudicial, mas um meio inadmissível e incompreensível para um fim, isto é, uma compensação do medo que tem muitas razões de ser. Se houvesse silêncio, o medo levaria as pessoas a refletir, e não se pode prever quantas coisas viriam à superfície da consciência. A maioria das pessoas tem medo do silêncio e, por isso, quando cessa o barulho constante de uma festa, por exemplo, é preciso fazer algo, falar, assobiar, cantar, tossir ou murmurar. A necessidade de barulho é quase insaciável, embora às vezes ele se torne insuportável. Mas sempre é melhor do que nada. No chamado "silêncio sepulcral", a sensação é sinistra. Por quê? Há fantasmas rondando? Dificilmente. O que se teme na verdade é o que poderia provir do interior da pessoa, isto é, tudo aquilo de que fugimos através do barulho.
(...) seria desejável reduzir o excesso de barulho, mas quanto mais atacar o barulho, tanto mais entrará no território proibido do silêncio tão temido. Irá privar aqueles sem importância e cuja voz nunca foi ou será ouvida da única alegria existencial e do incomparável prazer que sentem quando podem quebrar o silêncio da noite com o ranger estrepitoso de suas motos e carros e perturbar o sono dos outros com um barulho infernal. Neste momento eles são alguém de importância. O barulho é para eles uma raison d'être e uma afirmação de sua existência. Há muito mais pessoas do que se imagina que não se perturbam com o barulho, pois nada possuem em que possam ser perturbadas; ao contrário, o barulho lhes proporciona algo."
(Jung, Cartas, volume 3, pp. 106-107).